I N T E R S T Í C I O
Curadoria por Chico Soll
No quarto, uma sombra é projetada na parede e eu a observo deitado com os olhos semicerrados. Tento distinguir as linhas que se esforçam para delimitar um desenho. À procura da fonte dessa sombra, encaro a janela. Uma luz amarelada lava o cômodo e eu consigo sentir a minha pele aquecer enquanto essa mesma forma se projeta na parede também me toca. A sombra se confunde com as dobras do cobertor e, ao fechar os olhos, eu afundo.
[...] As obras de Yohannah de Oliveira exploram a indefinição do que é luz e o que é sombra, o que é sólido e etéreo, o que é pintura e o que é objeto. Por vezes, a luz se faz fundo e apresenta a sombra como uma janela. Em outros momentos, é a sombra que tem esse papel. É um jogo de suspensão da forma, ainda mais aparente quando a pintura deixa escapar o vazio da organza transparente. A
tinta flutua no suporte, como se deslizasse e quisesse nos mostrar que, mesmo sendo tinta sobre um tecido esticado em um chassi, ainda é essa característica fluída da luz que a artista busca. Quando a forma se faz sólida nas cerâmicas, é a diferença do relevo que opera essa dubiedade e o peso do material se suspende no espaço.
[...] Deixo meu corpo cair e enquanto estou em queda livre percebo que não caio: flutuo. A luz que aquecia o quarto me acompanha e agora é de um amarelo brilhante que ofusca minha visão. Dessa vez, os olhos quase fechados se fazem necessários para conseguir enxergar alguma coisa. As linhas, que antes tentavam
dar forma a um desenho, agora são mais claras e, mesmo com certa definição, ainda se fazem indeterminadas. Não sei se o que vejo é uma memória, uma história que ouvi alguém contar ou algo que está acontecendo agora diante de mim.
[...] Hanz Ronald constrói narrativas oníricas a partir do gesto em suas pinturas. As formas se diluem na fluidez da cor, que além de luz, agora se tornam também água. O gesto delicado indica uma intimidade entre as cenas pintadas. A cor, enquanto fluído, borra os limites de cada imagem. É como aquela memória que se confunde entre outros pensamentos, uma lembrança de algo que talvez ainda não tenha acontecido. Os fluxos, como o artista chama as grandes zonas de amarelo indiano em suas pinturas, são como raios que inundam o breu e delimitam as formas que o escuro torna difícil distinguir.
[...] Com o tempo, percebo que o ar em que flutuava se torna espesso e gelado. Me encontro submerso em água límpida e transparente. Consigo ver, ao longe, uma luz tocando a superfície. Me esforço para emergir. Meu rosto se aquece ao ser tocado pelo calor desta luz que ilumina. Abro os olhos.
[...] O procedimento do desenho se faz evidente no processo de Hanz pelas linhas marcadas em suas pinturas, por vezes ajudando na definição dos limites da cor. Os estudos em lápis nos ajudam a perceber como o artista pensa as formas que posteriormente pinta, as linhas se transformam e dão indícios do que ainda há de se tornar gesto e tinta. O contraste da pincelada de Yohannah se torna sólido na
argila, que volta a pintura pelas camadas de cor dos vidrados. Nesse espaço entre práticas que têm a pintura tanto como ponto de partida quanto destino, Hanz Ronald e Yohannah de Oliveira apresentam Interstício.
I N T E R S T I C E
Curated by Chico Soll
In the room, a shadow is cast on the wall, and I watch it from my bed with half-closed eyes. I try to distinguish the lines as they strive to outline a shape. Searching for the source of this shadow, I look towards the window. A yellowish light washes over the room, and I can feel my skin warming as the same shape projected on the wall also touches me. The shadow blends with the folds of the blanket, and as I close my eyes,I sink.
[...] The works of Yohannah de Oliveira explore the ambiguity of what is light and what is shadow, what is solid and ethereal, what is painting and what is object. Sometimes, light becomes the background, presenting shadow as a window. At other times, the shadow takes on this role. It’s a play of suspended form, even more apparent when the painting reveals the emptiness of transparent organza. The paint floats on the surface, as if sliding, aiming to show us that, even as paint on stretched fabric, it is this fluid characteristic of light that the artist seeks. When form becomes solid in ceramics, the difference in relief creates this duality, and the weight of the material seems suspended in space.
[...] I let my body fall, and while in free fall, I realize that I am not falling: I am floating. The light that warmed the room follows me, now a bright yellow that blinds my vision. This time, my nearly closed eyes are necessary to see anything. The lines that once tried to shape a form are now clearer, and even with some definition, they remain indeterminate. I’m unsure if what I see is a memory, a story I heard someone tell, or something happening before me right now.
[...] Hanz Ronald constructs dreamlike narratives through the gesture in his paintings. The forms dissolve in the fluidity of color, which, beyond light, now also becomes water. The delicate gesture indicates an intimacy between the painted scenes. Color, as a fluid, blurs the boundaries of each image. It’s like that memory that blends with other thoughts, a recollection of something that perhaps hasn’t yet occurred. The flows, as the artist calls the large zones of Indian yellow in his paintings, are like rays flooding the darkness, defining forms made indistinct by the dark.
[...] Over time, I realize the air I was floating in becomes thick and cold. I find myself submerged in clear, transparent water. I can see, far away, a light touching the surface. I struggle to emerge. My face warms as it is touched by the heat of this illuminating light. I open my eyes.
[...] The procedure of drawing becomes evident in Hanz's process through the marked lines in his paintings, sometimes helping to define the boundaries of color. The pencil studies help us understand how the artist envisions the forms he later paints, with lines transforming and hinting at what will become gesture and paint. The contrast of Yohannah’s brushstroke becomes solid in clay, bringing painting back through the layers of glaze color. In this space between practices that have painting as both a starting point and destination, Hanz Ronald and Yohannah de Oliveira present Interstice.